quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Conto - Resta um rosto, por Tchello d’Barros

  




  RESTA UM ROSTO

Tchello d’Barros


Acordou ainda com sono, levantou-se vagarosamente e, de olhos semicerrados foi lentamente até o banheiro. Passou uma dose generosa de creme dental na escovinha e como de costume, escovou os dentes caminhando pela casa. A luz suave da aurora entrava aos poucos pelas janelas. Seguiu até a varanda e durante a escovação, pensava no que fazer naquele dia, enquanto olhava distraidamente para a imagem do pequeno tubo de creme dental que segurava na outra mão. A imagem publicitária mostrava ao lado da logomarca, um rosto, de semblante sublime e olhar enigmático. 


O sol já espiava por trás da silhueta da cidade. Era dia de dar sua corrida de meia hora, exercício que lhe fazia sentir-se tão bem. Ao passar pelo tapume de uma obra, percebeu um grande cartaz colado, desses que anunciam shows. Na corrida, não prestou atenção no evento ali divulgado, mas notou a fotografia em destaque, parecida com a que havia visto minutos antes no tubo do creme dental. Seguiu em seu ritmo, recebendo na pele os primeiros raios solares do novo dia.


No desjejum, para acompanhar o café forte, que lhe fazia acordar de vez, preparou torradas com pão integral. Ao cobrir a torrada com geleia de mirtilo, notou que o rótulo no pote tinha também um rosto impresso, inclusive bem semelhante ao que havia visto rapidamente no cartaz durante a corrida. Diluiu essas coincidências na segunda xícara, bebida com alguma avidez, pois mais um dia estava para de fato começar.


Não demorou e já estava em frente ao computador para mais uma rotineira jornada de trabalho. No meio da manhã, uma breve pausa, que incluiu um suco de laranja. Aproveitou para uma rápida visita às redes sociais em seu celular. Possivelmente a internet estava com defeito naquele dia pois todas as carinhas das pessoas eram a mesma, estavam iguais, um mesmo rosto se repetia. Pensou que já havia visto aquele rosto antes. Lembrou da face presente no rótulo da geleia. Depois desse intrigante intervalo, limitou-se a retornar para suas atividades profissionais. 


Conforme fazia habitualmente, esperou a fome chegar para dirigir-se ao aconchegante restaurante da esquina. Almoçava tranquilamente e ouvia as notícias do dia, a partir de um televisor presente num canto do estabelecimento. Já no caixa, ao pagar a conta, antes de sair olhou de relance e pareceu que a pessoa que apresentava o telejornal era a mesma que havia visto nas carinhas repetidas nas redes sociais. Começou a preocupar-se. Seria um tipo estranho de déjà vu? Aquele suco conteria alguma substância alucinógena? Estaria confundindo a mera semelhança entre as pessoas? O mais provável era que se tratasse de alguma nova celebridade, agora muito famosa...


Saiu do restaurante com alguma perplexidade, pensando que o que precisava mesmo era se distrair um pouco... Não faria mal uma passada em sua livraria predileta para saber das novidades. Nas duas quadras que lhe separavam do shopping center, não pôde deixar de notar um out-door ao longe, em cujo anúncio se via o já conhecido rosto, que de longe, fitava-lhe, com seu semblante sublime. Apressou o passo e pouco antes de adentrar o mercado, viu passar um caminhão, em cuja lateral estava adesivada uma publicidade qualquer, mas com destaque para aquele mesmo rosto, que apresar da velocidade, lhe observava com seu olhar enigmático.


Um tanto ofegante, entrou no shopping e foi direto para a livraria. Antes de entrar, tomou um susto pois havia na vitrine um cartaz em destaque divulgando o best seller da semana e lá estava mais uma vez aquele rosto. A respiração acelerou, mas adentrou na loja mesmo assim. Sem cumprimentar os atendentes, pegou nervosamente dois livros quaisquer de uma estante de novidades e sentou-se numa poltrona. Fechou os olhos, respirou fundo, tentou acalmar-se. Aos poucos, começou a manusear o primeiro livro, um romance policial. Não conseguiu concentrar-se muito nas informações da capa, mas ao abrir a obra, constatou aquela mesma face, já tão familiar, na orelha do livro. Imediatamente pegou o outro volume, sobre história da filosofia e, na contracapa, identificou em tamanho grande o mesmo rosto de sempre, que mais uma vez, lhe encarava fixamente.


Levantou-se num sobressalto, enquanto os livros caíram no chão. Começou a tremer. Desconfiando de tudo, dirigiu-se à sua sessão preferida na livraria, onde já tinha uma certa relação com aquelas obras. Olhando de soslaio para os lados, retirou um exemplar e lá estava o rosto, desta vez na capa. Seu coração acelerou. Retirou um volume capa dura e ali estava também na capa o mesmo rosto. Sentiu uma certa moleza nas pernas. Pegou de uma vez três exemplares de uma série de livros de bolso, e ali estavam eles exibindo na capa essa misteriosa personagem que agora insistia em fazer parte de sua vida. Perdeu a cor do seu próprio rosto, sentiu uma forte tontura e a respiração ficou difícil...


Acordou no quarto de um pronto-socorro, na companhia de um médico e uma enfermeira. Estes lhe explicaram, enquanto retiravam a agulha do soro de seu braço, que havia sofrido um pequeno desmaio, mas que não precisava se preocupar, podia ser simplesmente stress ou falta de sono, mas que deveria repousar em casa. Nem tentou lhes contar a sequência de rostos que lhe perseguiam, mas após este surto, imaginou que agora tudo estaria bem, tudo voltara ao normal. Recebeu alta imediatamente. Ao sair, ainda no saguão, não pôde deixar de observar que na parede havia uma antiga fotografia do fundador daquele hospital. Estarreceu-se ao constatar que o rosto continuava a lhe perseguir.  


Talvez pelo efeito dos medicamentos, saiu dali caminhando a esmo, sem saber bem o que fazer. O sol se pondo e aquela estranha sensação, a insolente companhia involuntária de uma cara que aparecia em todos os lugares. A recomendação era que fosse para casa repousar, mas achou que era melhor estar perto das pessoas. Lembrou de um lugar onde relaxava de verdade. Tomou o primeiro táxi e dirigiu-se ao cinema mais próximo, sem deixar de notar que a desgastada fotografia 3 x 4 da carteirinha do taxista, disponibilizada no painel, exibia aquele retrato, com o qual já sentia alguma intimidade. 


Ao adentrar a bomboniére do cinema, prometeu não olhar os cartazes, com medo do de ver ali já se sabe quem... Não comprou pipocas nem nada, apenas entrou no meio da sessão e espalhou-se num assento do fundo. Limitou-se a chorar baixinho, as lágrimas lhe impediam de ver o filme. Esforçou-se para não soluçar. Permaneceu um tempo ali, sem compreender o que acontecia. Com o corpo um pouco mais relaxado, com as mãos enxugou os olhos e, sem condições de prestar atenção ao enredo do filme, apenas olhava absortamente para a tela. Qual não foi sua surpresa ao ver que todos os atores e atrizes tinham aquele mesmíssimo rosto... 


Conseguiu voltar para casa. Sentia um estranho cansaço. Evitou olhar para qualquer superfície, impresso ou tela que pudesse conter imagens. Questionava sobre o porquê de isto estar acontecendo. Começou a imaginar que poderia ser algum tipo de loucura mesmo. Imaginou um diagnóstico de demência, passando o resto da vida num hospício. Estranhou tudo isso, já que não usava drogas. Também não se tratava de algum problema de visão, já que não usava óculos e lia muito bem. Talvez estivesse apenas sonhando. Quem sabe, amanhã tudo voltasse ao normal. Mas também poderia ser que essa profusão de caras questionadoras lhe acompanhasse para sempre.


Sentindo uma certa exaustão, antes de dormir, foi novamente escovar os dentes. Aproveitou para lavar a cara, que ainda guardava um resto de lágrimas secas. Ao ver-se no espelho, lá estava um certo rosto, já muito familiar, fitando-lhe com seu semblante sublime e olhar enigmático. 


 FIM




Tchello d'Barros é escritor e roteirista. Publicou 7 livros e possui contos e poemas publicados em cerca de 100 coletâneas, antologias e didáticos. Ministra oficinas literárias e coordena a itinerância internacional de seu projeto multimídia de Poesia Visual “Convergências”. 

 

Contatos do Autor

E-mail: tchellodbarros@yahoo.com.br



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