terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Conto - O Marinheiro Veloz, por Massilon Silva

 


  O MARINHEIRO VELOZ

Massilon Silva 

 

No final dos anos 50, quando ainda não existiam as barragens de Sobradinho,  Xingó, Itaparica e parte do complexo de Paulo Afonso, que fazem movimentar o conjunto de turbinas de hidroelétricas que fornecem o total da energia consumida no nordeste e distribuída pela CHESF, a vazão normal do Rio São Francisco era quase dez vezes superior ao que se registra nos dias de hoje, o que proporcionava um sistema de navegação intenso desde as cidades de Penedo em Alagoas e Propriá em Sergipe, até Piranhas /AL, última fronteira navegável do rio no chamado Baixo São Francisco. A frenética movimentação de canoas de tolda, lanchas, barcos e navios de pequeno calado incluía a cidade de Pão de Açúcar, em Alagoas, com seu movimentado porto, estrategicamente localizada na metade do percurso. Mais tarde, não só a construção das hidroelétricas,  mas o florescimento do sistema rodoviário aliado à destruição das matas ciliares e desaparecimento de inúmeros afluentes do Rio da Unidade Nacional, causaram o colapso da navegação fluvial no sertão e baixo São Francisco, ficando reduzida ao que hoje é,  subsistente apenas o transporte de pessoas e mercadorias destinadas às feiras livres locais, podendo-se citar ainda uma incipiente atividade turística. 

Pois bem. Por aqueles idos, o Pão de Açúcar ostentava o posto de cidade desenvolvida, sediando indústrias beneficiadoras de algodão, arroz e um comércio bastante movimentado, para onde confluíam representantes comerciais de vários ramos da atividade mercantil. Eram os famosos viajantes, que munidos de suas pastas e catálogos iam promover a venda de produtos os mais variados.  A cidade contava com alguns hotéis que acomodavam os visitantes, cinema, pequenos restaurantes, bares frequentados por boêmios das mais variadas matizes e, como em toda cidade desenvolvida de sua época, seus cabarés. 

Como dizia o saudoso Ariano Suassuna, toda cidade de interior dá-se ao luxo de abrigar seu doido e seu mentiroso oficial. Tonho Doido, o representante dos sem-juízo,  era conhecido por ocupar horas e horas dos seus modorrentos dias medindo as águas do rio, o que fazia com o auxílio de uma lata vazia de óleo vegetal, com a quantidade recolhida convertida em "apolo", um sofisticado sistema métrico decimal de sua autoria. A depender das horas trabalhadas o resultado era apresentado em apolos d'água, quantidade que invariavelmente retornava para o lugar de onde veio - o rio. 

O segundo personagem era "seu" Chagas do Hotel, assim conhecido por ser proprietário da hospedaria mais próspera e conhecida da cidade, não apenas por sua excelente acolhida, mas em especial pela fama do dono, o mais famoso contador de histórias de confirmação duvidosa daquelas paragens. Seu Chagas não era um mentiroso qualquer que inventasse estórias com o intuito de enganar, confundir, denegrir a imagem de alguém, mas um cidadão que mentia (recorro mais uma vez ao mestre Ariano) "por amor à arte".  

Nas longas noites do lugar, às vezes amenas outras com temperaturas beirando os quarenta graus centígrados, a única e mais divertidas maneira de chegar à paz ao dia seguinte eram os casos do Chagas, e a coisa funcionava assim: ora o contador de fatos duvidosos ou não provados contava uma "anedota" e alguém do improvisado auditório contava outra na tentativa de superá-lo, ora os presentes contavam as suas, mas ninguém até então conseguira reverter o quadro, isto é,  debulhar mais criatividade que o mestre e anfitrião,  e assim sua fama se espalhava por rios e mares. Famosas estórias como a do Nego d'Água, personagem que ainda hoje povoa o imaginário fantástico dos ribeirinhos, que fora capturado por um pescador em Paulo Afonso, criado e educado à maneira dos humanos por um comerciante de Propriá, terminando seus dias como marinheiro na Bahia, ou do macaco que sobreviveu a um pequeno naufrágio graças à sua extraordinária habilidade de nadador, eram contadas e recontadas sob aplausos. A respeito desta última não se registrou um estrondoso fracasso do narrador, graças à providencial interferência de sua mulher, D. Celestina, que acrescentou uma cerca de arame farpado ao lago, em cujas estacas nosso ancestral peludo teria se agarrado até a vinda do socorro. D. Celestina era uma espécie de Terta do Sertão, citação alusiva à famosa personagem de Chico Anísio, que não apenas confirmava as avessadas histórias do marido Pantaleão como às vezes dava-lhes uma retificadora roupagem. 

Ednaldo Eirado, representante comercial de Recife, frequentador habitual do Hotel e fã dos contos fantásticos de Chagas, resolveu uma noite superá-lo em astúcia e inteligência, afirmando para todos que contaria uma mentira tão má, tão inverossímil! Que obrigaria seu opositor a ficar calado e fora de combate por muito tempo. Diante da descrença geral foi criada uma bolsa de apostas com cada um depositando em uma caixa de papelão certa quantia em moedas que passariam a pertencer ao,  digamos,  desafiante caso se sagrasse vitorioso em tão aguerrida peleja.  Todos devidamente acomodados em seus lugares,  veio a bomba que aqui se reproduz "ipisis litteris. 

" Um marinheiro do Corpo de Fuzileiros Navais que servia à Marinha de Guerra do Brasil no Rio de Janeiro decidiu,  em férias, visitar seus familiares que moravam em Paulo Afonso. Alto,  forte, moreno claro e musculoso, conversa agradável,  apresentou-se ao comandante do vapor Itália no porto de Penedo para viajar à sua terra natal, sendo de imediato admitido na embarcação como passageiro de primeira classe. Muito extrovertido e galante dirigiu-se ao convés  e ali travou amizades,  entre um e outro gole de cachaça de cabeça com bom tira-gosto, no intento de abreviar as cerca de quatro horas do percurso de mais de cem quilômetros. 

Após navegar por 40 quilômetros a embarcação aportou na cidade de Piaçabuçu,  Alagoas,  para procedimento normal de embarque e desembarque de pessoas e mercadorias, desembarcando 'motu proprio' também o jovem marinheiro. Como não precisasse exibir bilhete de passagem (fazia valer-se da famosa carteirada) e ninguém lhe sabia o nome,  foi deixado naquela cidade supostamente por não haver conseguido retornar a tempo para reembarque.  Isso, porém só foi notado pelos tripulantes após meia hora de viagem, no entanto, por se tratar de pessoa com raízes ribeirinhas, talvez houvesse ficado em casa de algum parente ou conhecido,  para no dia seguinte tomar outro barco e completar a viagem. O fato não deixou de causar certa inquietude entre os passageiros que até mesmo aventuram da possibilidade de afogamento em algum ponto perigoso do rio,  o que era quase corriqueiro em circunstâncias similares. Felizmente não foi o que ocorreu, como mais tarde foi constatado. Naquela noite o rio se mostrava com águas menos revoltas, o vento era pouco, o que permitia o deslocamento tranquilo do vapor,  reduzindo em meia  hora o tempo previsto da chegada,  navegando  a  uma  velocidade  náutica de 20 nós/h. 

Chegando o Itália ao porto de Pão de Açúcar; desatados as cordas; baixada a âncora e alcançado terra firme passageiros e tripulantes,  a surpresa - o passageiro/marujo estava no porto, já sem camisa,  vestindo bermuda e tomando umas e outras em companhia de populares. Estarrecidos, todos quiseram saber como o jovem lobo-do-mar conseguiu chegar antes do vapor, considerada a impossibilidade de viagem por terra em virtude da inexistência de estradas e veículos de roda, veio a explicação.  Realmente eu desci em Piaçabuçu,  mas ao notar que a viagem seria demorada optei por vir nadando.  Em determinado trecho,  ao ultrapassar o barco ainda acenei para o piloto, mas a escuridão não lhe permitiu que me avistasse. Segui então nadando e cheguei primeiro como todos estão vendo, são e salvo ". 

Narrada a estória com invejável categoria,  Ednaldo ainda arrematou: inacreditável! mas pessoas hoje ainda vivas me asseguraram de sua veracidade. Os circunstantes então emudeceram ante o fato consumado da perda das apostas, olhando uns para os outros estarrecidos com aquela capacidade imaginativa preparavam-se para pagar o combinado.  Uma inesperada reação do natural oponente, no entanto, recobrou-lhes os ânimos. Viram Chagas convocar sua respeitável senhora, dizendo em alto e bom som: - Ouviu isso, Celestina? Se a história fosse contada por mim todos diriam que jamais aconteceu, chamando-me de mentiroso e é esta a razão porque nunca contei. Ouvi tudo calado,  sem interferir e principalmente para ver se a narrativa correspondia à realidade, mas O MARINHEIRO ERA EU. 

 FIM


Massilon Ferreira da Silva é Jornalista, escritor e poeta, foi correspondente do Jornal de Alagoas, Jornal de Hoje e semanário Desafio, todos de Maceió, Alagoas. Membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, Academia Alagoana de Literatura de Cordel, Academia Sergipana de Cordel e da Academia de Letras de Pão de Açúcar. 

 

Contatos do Autor

E-mail: massilonsilva00@gmail.com



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