quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Mácula da Sanidade - Parte 3

O Carrossel



As figuras pareciam nativos, aborígenes a cavalo, em seu dançar ao redor da fogueira entoando cânticos a lua ou a seres umbrais que faziam parte de suas crenças. Mas apesar da diminuta vela projetar suas sombras rodopiando ao nosso redor, a engenharia do mecanismo envolta dela era esculpida em pequenos cortes de carne e opacas lascas de ossos. Cuidadosamente configurados como um brinquedo macabro, alguns atravessados com varetas e outros presos a anzóis, todos formando um círculo ao redor da pequena iluminaria de cera. Aquilo me lembrava um carrossel de parque, porém num tamanho diminuto.

Entre carne e ossos haviam ainda os olhos, orelhas, fios de cabelo e dedos. Alguns orgãos internos de certo também haviam sido utilizados. O corpo, ou o que restava dele, estava espalhado pelo chão do escritório e impossível de identificar com um olhar. Não sabia se era homem ou mulher, na verdade nem mesmo dava para imaginar que um dia aquilo foi um ser humano. Nada mais além disso eu poderia descrever pois não suportei passar mais do que um minuto naquela sala.



Thompson reportou, desci em silêncio as escadas até chegar na rua, os outros passavam por mim e me observavam aguardando qualquer informação. Dos que seguiram primeiro, ao longe pude escutar seus gritos de repulsa, outros voltavam correndo a regurgitar suas últimas refeições pelo caminho.

Decidido a sair daquele lugar eu ignorei toda a parte procedural do processo, estava em choque e fui direto para casa, não consegui me alimentar e nem mesmo impedir minha mente de divagar por áreas nebulosas da psique. Atualmente morava sozinho em um sobrado a poucas quadras dali, após um banho gelado fui me deitar mas o sono não veio, fiquei refletindo sobre uma mancha no teto enquanto as cenas vinham como flashs através das lembranças, era como se o tempo não existisse e quando me dei conta o sol já havia invadido o quarto pela janela.

Estava sonhando acordado, estava mais para pesadelos na verdade. Ainda assim três batidas na porta não foram o suficiente para me fazer levantar, em pouco tempo ele já havia entrado no quarto e apesar de te-lo percebido permaneci estático.

“Eu tenho um trabalho a cumprir e preciso de sua ajuda, vou descer e aguardarei por cinco minutos. De outra forma você não precisa mais voltar ao distrito.”

As palavras de Marchan soaram como um ultimato, e provavelmente eram.

Contrariando minhas próprias expectativas lá estava eu de frente para a pia contemplando no espelho uma aparência desgastada mentalmente, a barba por fazer, os olhos fundos e colados a uma expressão abatida, reflexos de imagens perturbadoras que causaram horas de insônia e certamente tardariam para abandonar meus pensamentos.

Poucas horas depois estava de volta ao local do crime, Marchan me explicara que o ‘corpo’ era de um homem de meia idade identificado como Lucio Milán, ele já era conhecido da policia por realizar furtos de material condutor e outros tipos de peças de engenharia em fabricas descontinuadas.

Após algum tempo eu já não reagia estranhamente ao local então pude pensar com mais clareza, Marchan parecia estar com a mente mais apurada desde a noite anterior. Não demorou para deduzir o que levou Milán até seu leito de morte. Nosso raciocínio trabalhou quase sincronizado.

“Três tiros. Ele percebeu alguma coisa vindo por detrás da porta e se sentiu ameaçado o suficiente para disparar três vezes, porém não foi o suficiente. O que quer que tenha sido, alvejou ele a uma distância de quatro metros e o arrastou do local onde encontramos a maleta, através da porta e então para dentro do escritório.”

Ao final meus olhos estavam encarando a porta ao final do corredor, a imagem do carrossel passou novamente pela minha mente mas logo comecei a subentender aonde levava a dedução de Marchan.

‘Alguma coisa’ e ‘o que quer que tenha sido’ não pareciam fazer referencia a algo concebível, por um momento imaginei a cena. Algo se alongando a partir da porta até o local onde estava a maleta, com frieza para ignorar um ataque contrário e ainda revidar, agarrar e com grande força arrastar o adversário em pânico por quatro metros para as trevas, de encontro com a morte. Ou algo ainda muito pior antes do derradeiro final que ele teve. O Carrossel.

- Ele é um artista. – Eu Disse – Ainda que macabro, ele moldou uma escultura a partir dos restos mortais de Lúcio Milán. Não me lembro de nenhum caso similar a esse, mas talvez tenha que aprofundar minhas pesquisas. – Concluí apreensivo.

Marchan permaneceu em silêncio, pensativo, pouco a pouco foi me passando detalhes de sua análise que cuidadosamente eu anotava. Ter sua orientação durante aquele momento me parecia o mais sensato a se fazer, sua experiência de certo o ajudou a absorver fatos como aquele com mais frieza, o que era óbvio ao observar a categoria com que analisa as pistas sem se deixar levar pela insanidade dos fatos.

Durante a avaliação o policial Ezekias apareceu informando ter algumas novidades a respeito das suspeitas de sequestro do Dr. Noble.

Segundo ele, o paciente que Noble suspeitava estar envolvido fugiu da custódia do Asilo horas antes de sua esposa ter desaparecido, com certeza não era apenas coincidência. Porém o mais intrigante eram os relatos dos enfermeiros naquela noite, aparentemente coisas estranhas aconteceram no local, uma perturbação generalizada entre os internos provavelmente acobertou a fuga e quando se deram conta do ocorrido alguns dos próprios enfermeiros ficaram perturbados com oque encontraram no quarto.

Ezekias não tinha palavras para descrever o que viu, apenas deixou alguns oficiais no local para preservar a cena e informou que seria melhor que víssemos com os próprios olhos.

A morte de Lúcio Milán talvez tivesse ligação com o sumisso de Sophie Noble, talvez fosse apenas uma coincidente distração ou talvez todas as nossas hipóteses que levantamos até então estivessem erradas. Como analista eu não conseguia relacionar os fatos e Marchan continuava mantendo sua postura pensativa apesar de transparecer estar muito intrigado.

Horas depois estávamos a caminho de Arles, acabamos por seguir a única pista de nosso roteiro original.

Quando entramos naquele aposento isolado na torre norte do Asilo Rhône, foi quando as coisas começaram a fazer sentido.


Confira a história toda na sessão Contos & Mythos

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